Obama: O discurso de vitória
05.11.2008 - 20h24
Boa noite, Chicago. Se ainda houver alguém que duvida que a América é o lugar onde todas as coisas são possíveis, que questiona se o sonho dos nossos fundadores ainda está vivo, que ainda duvida do poder da nossa democracia, teve esta noite a sua resposta.É a resposta dada pelas filas de voto que se estendiam em torno de escolas e igrejas em números que esta nação jamais vira, por pessoas que esperaram três e quatro horas, muitas pela primeira vez na sua vida, porque acreditavam que desta vez tinha de ser diferente, que as suas vozes poderiam fazer essa diferença.É a resposta dada por jovens e velhos, ricos e pobres, democratas e republicanos, negros, brancos, hispânicos, asiáticos, nativos americanos, homossexuais, heterossexuais, pessoas com deficiências e pessoas saudáveis. Americanos que enviaram uma mensagem ao mundo, a de que nunca fomos apenas um conjunto de indivíduos ou um conjunto de Estados vermelhos e azuis.Somos e sempre seremos os Estados Unidos da América.É a resposta que levou aqueles, a quem foi dito durante tanto tempo e por tantos para serem cínicos, temerosos e hesitantes quanto àquilo que podemos alcançar, a porem as suas mãos no arco da História e a dobrá-lo uma vez mais em direcção à esperança num novo dia.Há muito que isto se anunciava mas esta noite, devido àquilo que fizemos neste dia, nesta eleição, neste momento definidor, a mudança chegou à América.Há pouco recebi um telefonema extraordinariamente amável do Senador McCain.O Senador McCain lutou longa e arduamente nesta campanha. E lutou ainda mais longa e arduamente pelo país que ama. Fez sacrifícios pela América que muitos de nós não conseguimos sequer imaginar. Estamos hoje melhor devido aos serviços prestados por este líder corajoso e altruísta.Felicito-o e felicito a governadora Palin por tudo aquilo que alcançaram. Espero vir a trabalhar com eles para renovar a promessa desta nação nos próximos meses.Quero agradecer ao meu parceiro neste percurso, um homem que fez campanha com o seu coração e falou pelos homens e mulheres que cresceram com ele nas ruas de Scranton e viajaram com ele no comboio para Delaware, o vice-presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden.E eu não estaria aqui hoje sem o inabalável apoio da minha melhor amiga dos últimos 16 anos, a pedra angular da nossa família, o amor da minha vida, a próxima Primeira Dama do país, Michelle Obama.Sasha e Malia, amo-vos mais do que poderão imaginar. E merecem o novo cachorro que virá connosco para a nova Casa Branca.E embora ela já não esteja entre nós, sei que a minha avó está a observar-me, juntamente com a família que fez de mim aquilo que sou. Tenho saudades deles esta noite. Reconheço que a minha dívida para com eles não tem limites.Para a minha irmã Maya, a minha irmã Alma, todos os meus outros irmãos e irmãs, desejo agradecer-vos todo o apoio que me deram. Estou-vos muito grato.E ao meu director de campanha, David Plouffe, o discreto herói desta campanha, que, na minha opinião, concebeu a melhor campanha política da história dos Estados Unidos da América.E ao meu director de estratégia, David Axelrod, que me tem acompanhado em todas as fases do meu percurso.Para a melhor equipa alguma vez reunida na história da política: tornaram isto possível e estou-vos eternamente gratos por aquilo que sacrificaram para o conseguir.Mas acima de tudo nunca esquecerei a quem pertence verdadeiramente esta vitória. Ela pertence-vos a vós. Pertence-vos a vós.Nunca fui o candidato mais provável para este cargo. Não começámos com muito dinheiro nem muitos apoios. A nossa campanha não foi delineada nos salões de Washington. Começou nos pátios de Des Moines, em salas de estar de Concord e nos alpendres de Charleston. Foi construída por homens e mulheres trabalhadores que, das suas magras economias, retiraram 5 e 10 e 20 dólares para a causa.Foi sendo fortalecida pelos jovens que rejeitavam o mito da apatia da sua geração e deixaram as suas casas e famílias em troca de empregos que ofereciam pouco dinheiro e ainda menos sono.Foi sendo fortalecida por pessoas menos jovens, que enfrentaram um frio terrível e um calor sufocante para irem bater às portas de perfeitos estranhos, e pelos milhões de americanos que se ofereceram como voluntários, se organizaram e provaram que mais de dois séculos depois, um governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecera da Terra.Esta vitória é vossa.E sei que não fizeram isto apenas para vencer uma eleição. E sei que não o fizeram por mim.Fizeram-no porque compreendem a enormidade da tarefa que nos espera. Porque enquanto estamos aqui a comemorar, sabemos que os desafios que o amanhã trará são os maiores da nossa vida – duas guerras, uma planeta ameaçado, a pior crise financeira desde há um século.Enquanto estamos aqui esta noite, sabemos que há americanos corajosos a acordarem nos desertos do Iraque e nas montanhas do Afeganistão para arriscarem as suas vidas por nós.Há mães e pais que se mantêm acordados depois de os seus filhos adormecerem a interrogarem-se sobre como irão amortizar a hipoteca, pagar as contas do médico ou poupar o suficiente para pagar os estudos universitários dos filhos.Há novas energias para aproveitar, novos empregos para serem criados, novas escolas para construir, ameaças para enfrentar e alianças para reparar.O caminho à nossa frente vai ser longo. A subida vai ser íngreme. Podemos não chegar lá num ano ou mesmo numa legislatura. Mas América, nunca estive tão esperançoso como nesta noite em como chegaremos lá.Prometo-vos. Nós, enquanto povo, chegaremos lá.Haverá reveses e falsas partidas. Há muitos que não concordarão com todas as decisões ou políticas que eu tomar como presidente. E sabemos que o governo não consegue solucionar todos os problemas.Mas serei sempre honesto para convosco sobre os desafios que enfrentarmos. Ouvir-vos-ei, especialmente quando discordarmos. E, acima de tudo, pedir-vos-ei que adiram à tarefa de refazer esta nação da única forma como tem sido feita na América desde há 221 anos – pedaço a pedaço, tijolo a tijolo, e com mãos calejadas.Aquilo que começou há 21 meses no rigor do Inverno não pode acabar nesta noite de Outono.Somente a vitória não constitui a mudança que pretendemos. É apenas a nossa oportunidade de efectuar essa mudança. E isso não poderá acontecer se voltarmos à forma como as coisas estavam.Não poderá acontecer sem vós, sem um novo espírito de empenho, um novo espírito de sacrifício.Convoquemos então um novo espírito de patriotismo, de responsabilidade, em que cada um de nós resolve deitar as mãos à obra e trabalhar mais esforçadamente, cuidando não só de nós mas de todos.Recordemos que, se esta crise financeira nos ensinou alguma coisa, é que não podemos ter uma Wall Street florescente quando as Main Street sofrem.Neste país, erguemo-nos ou caímos como uma nação, como um povo. Resistamos à tentação de retomar o partidarismo, a mesquinhez e a imaturidade que há tanto tempo envenenam a nossa política.Recordemos que foi um homem deste Estado que, pela primeira vez, transportou o estandarte do Partido Republicano até à Casa Branca, um partido fundado em valores de independência, liberdade individual e unidade nacional.São valores que todos nós partilhamos. E embora o Partido Democrata tenha alcançado uma grande vitória esta noite, fazemo-lo com humildade e determinação para sarar as divergências que têm atrasado o nosso progresso.Como Lincoln disse a uma nação muito mais dividida do que a nossa, nós não somos inimigos mas amigos. Embora as relações possam estar tensas, não devem quebrar os nossos laços afectivos.E àqueles americanos cujo apoio ainda terei de merecer, posso não ter conquistado o vosso voto esta noite, mas ouço as vossas vozes. Preciso da vossa ajuda. E serei igualmente o vosso Presidente.E a todos os que nos observam esta noite para lá das nossas costas, em parlamentos e palácios, àqueles que estão reunidos em torno de rádios em cantos esquecidos do mundo, as nossas histórias são únicas mas o nosso destino é comum, e uma nova era de liderança americana está prestes a começar.Aos que querem destruir o mundo: derrotar-vos-emos. Aos que procuram a paz e a segurança: apoiar-vos-emos. E a todos aqueles que se interrogavam sobre se o farol da América ainda brilha com a mesma intensidade: esta noite provámos novamente que a verdadeira força da nossa nação não provém do poder das nossas armas ou da escala da nossa riqueza, mas da força duradoura dos nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e uma esperança inabalável.É este o verdadeiro génio da América: que a América pode mudar. A nossa união pode ser aperfeiçoada. O que já alcançámos dá-nos esperança para aquilo que podemos e devemos alcançar amanhã.Esta eleição contou com muitas estreias e histórias de que se irá falar durante várias gerações. Mas aquela em que estou a pensar esta noite é sobre uma mulher que depositou o seu voto em Atlanta. Ela é muito parecida com os milhões de pessoas que aguardaram a sua vez para fazer ouvir a sua voz nestas eleições à excepção de uma coisa: Ann Nixon Cooper tem 106 anos.Ela nasceu apenas uma geração depois da escravatura, numa época em que não havia automóveis nas estradas nem aviões no céu; em que uma pessoa como ela não podia votar por duas razões – porque era mulher e por causa da cor da sua pele.E esta noite penso em tudo o que ela viu ao longo do seu século de vida na América – a angústia e a esperança; a luta e o progresso; as alturas em que nos foi dito que não podíamos e as pessoas que não desistiram do credo americano: Sim, podemos.Numa época em que as vozes das mulheres eram silenciadas e as suas esperanças destruídas, ela viveu o suficiente para se erguer, falar e votar. Sim, podemos.Quando havia desespero e depressão em todo o país, ela viu uma nação vencer o seu próprio medo com um New Deal, novos empregos, e um novo sentimento de um objectivo em comum. Sim, podemos.Quando as bombas caíam no nosso porto e a tirania ameaçava o mundo, ela esteve ali para testemunhar uma geração que alcançou a grandeza e salvou uma democracia. Sim, podemos.Ela viu os autocarros em Montgomery, as mangueiras em Birmingham, uma ponte em Selma, e um pregador de Atlanta que dizia às pessoas que elas conseguiriam triunfar. Sim, podemos.Um homem pisou a Lua, um muro caiu em Berlim, um mundo ficou ligado pela nossa ciência e imaginação.E este ano, nestas eleições, ela tocou com o seu dedo num ecrã e votou, porque ao fim de 106 anos na América, tendo atravessado as horas mais felizes e as horas mais sombrias, ela sabe como a América pode mudar.Sim, podemos.América, percorremos um longo caminho. Vimos tanto. Mas ainda há muito mais para fazer. Por isso, esta noite, perguntemos a nós próprios – se os nossos filhos viverem até ao próximo século, se as minhas filhas tiverem a sorte de viver tantos anos como Ann Nixon Cooper, que mudança é que verão? Que progressos teremos nós feito?Esta é a nossa oportunidade de responder a essa chamada. Este é o nosso momento.Este é o nosso tempo para pôr o nosso povo de novo a trabalhar e abrir portas de oportunidade para as nossas crianças; para restaurar a prosperidade e promover a causa da paz; para recuperar o sonho americano e reafirmar aquela verdade fundamental de que somos um só feito de muitos e que, enquanto respirarmos, temos esperança. E quando nos confrontarmos com cinismo e dúvidas e com aqueles que nos dizem que não podemos, responderemos com o credo intemporal que condensa o espírito de um povo: Sim, podemos.Muito obrigado. Deus vos abençoe. E Deus abençoe os Estados Unidos da América
4 comentários:
E que HONRA...
Este Post da nossa Amiga (permita-me) Paula Esteves tem que ser bem saboreado...
Acabo de abrir UM "VINTAGE"...mais logo direi o ano...
Só espero consiga subir os degraus...tenho que ir ao SOTÃO...
Volto mais logo...
Hummmmmm....que cheirinho!!!
Umas bolachinhas de água e sal e... vamos ver como me aguento...
lá...lá...lá...
até logo...
Ah!!!...é mesmo verdade, não tenho horas...
hummmmm...que cheirinho!!!
Saudações de esquerda
Olhar atento*militante de esuqerda
Acordei agora...Ups...
Apanhei uma alergia no Sotão...
Mas encontrei o que queria...
Entretanto tenho que ir à Farmácia comprar "actifed"...
que chatice...até este medicamento TERMINA EM "FED"...mas tem que ser.
Logo dou resposta à nossa Cara Amiga Paula Esteves...
Oh se dou!!!...
Até já..
Saudações de esquerda
Olhar atento*militante de esquerda
Ainda tenho a boca a saber a “papeis de musica”…e eu que detesto pautas…
Mas que o VINTAGE era bom…lá isso era…
Bem, vou pregar uma surpresa à nossa Amiga Paula Esteves…pelo imaginário….
Prepare-se que vai viajar no tempo…
Vou colocá-la em Lisboa…nos finais dos anos 80 e vai ter uma missão espinhosa… Entrevistar Eça de Queirós… em Paris…
E não se queixe pois quem de lembrou dos “Vencidos da Vida” não fui EU…
È evidente que ressalvo as palavras do Jornalista desta história/reportagem, imaginária, que antecede a entrevista e o seu estilo de escrita não se identifica…mas…terá que aguentar…algum vernáculo,enfim…nada que não se passe nas redacções dos Jornais…
Isto também é castigo…não me desafiasse…estava tão tranquilo…
Só não sei como lhe vou falar…em seguimento desta mensagem…dos QUARENTA IMORTAIS…o Tal livro que me provocou a alergia no Sótão…de publicações no Seara Nova…por Câmara Reys…logo veremos…nem que tenha de publicar um Lençol…neste POST…
Nota:
Com que então Marialva!!!…De uma coisa pode estar certa…não sou extravagante, não sou Conde, nem Marquês, gosto de cavalos, não sei cavalgar, gosto de Fado, mas não sou Fadista…Retiremos a brincadeira…entendo o seu contexto…mas adoooooro poesia…
Vamos então à sua LONGA Viagem…
O Carlos vai me dar cabo da cabeça…é a vida…
LISBOA EM AGOSTO
Primeiro de Agosto. Lisboa está transformada num caldo morno. No Rossio, onde paro para beber um fresco capilé, à sombra dos prédios, nos cafés e esplanadas discute-se política, a revolta dos boxers, mas sobretudo o atentado mortal contra o rei Humberto de Itália. Subo o Chiado, lentamente, parando de vez em quando para me abanar com o «palhinhas». Quando entro na redacção da Rua Larga de São Roque, o Neves tem um «ar de caso». Vejo logo que há mouro na costa. O Neves é um major de artilharia na reserva a quem a administração do jornal confiou a chefia da redacção. Coxeia de uma perna, recordação de uma zagaiada em Coolela, voz estentórea, modos bruscos. É para todos um mistério o motivo que levou a administração a escolhê- lo. Dizem uns que é por ser muito sério, outros por ser mação como o dono do jornal. Não sei. Gosto dele, embora às vezes se porte pior do que as cavalgaduras com que até há pouco lidou. Pergunta se já tenho pronto o texto sobre o voo do conde von Zeppelin. Está pendente de uma informação que espero obter ainda hoje.
Vou terminá-lo esta noite e trazê-lo amanhã.
Abre-me os olhos:- Veja lá se não se atrasa mais. Aqui nesta casa, enquanto for eu a comandar, pendentes só os t****es! … (**** meus)
Depois tosse, faz uma pausa e pergunta-me se conheço Paris. Claro que sim. Acabado o curso, o meu pai pagou-me duas semanas de regabofe na cidade das luzes.
Bem, o que ele me disse quando me entregou o cheque sobre o Credit Lyonnais é que era um contributo para completar a minha formação cultural. Nem vocês calculam como aquelas duas semanas ajudaram à minha formação cultural!
Respondo afirmativamente ao Neves. Que depois me pergunta se falo francês.
- Bien sûr, monsieur, respondo-lhe, aprimorando a pronúncia. E sou como o gato maltês, também me ajeito ao piano, acrescento. Mantém o carão fechado. Não tem sentido de humor, mas reconheçamos que a minha réplica não teve lá muita graça. E explica-me no seu linguarejar castrense que o Dr. Seabra Pinto, o director do jornal, quer que vá alguém a Paris entrevistar o Eça de Queirós, pois o Sousa, nosso correspondente local, telegrafou a dizer que o homem regressou da Suíça desiludido pelos médicos, que está por um fio. E que ele, Neves, apesar de tudo, se lembrou de mim. Depois, para que não me sinta muito elogiado, acrescenta que «os melhores jornalistas» estão a banhos e que «quem não tem cão caça mesmo com gato». Finjo não ouvir a última parte.
Para quem não saiba, o Eça é o Zeus do meu Olimpo. Por isso, a notícia de que a sua doença pulmonar, que lhe levou já três irmãos, se agravou ao ponto de se julgar iminente o fim, põe-me um nó na garganta e não sou capaz de continuar a caçoar com o Neves. Agradeço-lhe o ter-se lembrado de mim, apesar de tudo, e digo-lhe que só espero estar à altura da missão.
Habituado às minhas larachas, que até nem parecem desagradar-lhe embora nunca me dê troco, fita-me nos olhos, não vá eu estar de novo a mangar. Percebe que não estou. E começa a fornecer-me pormenores sobre a viagem.
NO DEALBAR DO NOVO SÉCULO, OU TALVEZ NÃO
Da Estação do Rossio até ao Entroncamento no comboio ronceiro.
Depois apanho o Sud-Express. Durmo e acordo. O calor é infernal. Já em terras de Espanha, lembro-me de uma discussão ao entardecer entre um gordo padre espanhol e um escanzelado comerciante de Lisboa.
O comerciante afirma que estamos no século XX. O padre diz que continuamos no século XIX até 31 de Dezembro.
Só em 1 de Janeiro de 1901 começa o novo século. Vendo-me acordado, põem-me ao corrente do diferendo. Ambos me querem como aliado.
O lisboeta pisca-me um olho, apelando à solidariedade nacional. Não tinha ainda pensado no assunto, digo, e considerava-me já no século XX.
Mas vistas bem as coisas (penso em voz alta, com os meus dois companheiros de viagem aguardando o meu veredicto), suponhamos que estamos no começo de uma nova era.
Só no dia 1 do ano 1 é que a era começa. O dia 1 do ano 1 é, neste caso, o dia 1 de Janeiro de 1901.
- Por supuesto! - diz triunfante o gorducho.
- Cebolório! - comenta despeitado o magricela.
Eu volto a adormecer.
COMO UM ROMANCE
Já depois de Hendaia, com outros viajantes no compartimento, pela janela do comboio deslizam paisagens e pela minha mente pensamentos.
Que sei eu sobre Eça de Queirós, além da leitura atenta e repetida das suas obras? Como num romance camiliano, o seu nascimento esteve mergulhado em mistério. No assento de baptismo reza: «José Maria - filho natural de José Maria d'Almeida de Teixeira de Queirós e de Mãe incógnita».
Mãe incógnita? A verdade só mais tarde se saberá: O Dr. José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, jovem delegado do procurador régio em Ponte de Lima, manteve amores clandestinos com Carolina Pereira de Eça, filha do tenente-coronel José António Pereira de Eça, já falecido. Carolina tem dezanove anos e sua mãe opõe-se ao namoro. Por isso, só depois da sua morte, em 1849 e quando o pequeno José Maria tem já quatro anos, os pais casam. Até então ele esteve entregue aos cuidados de uma ama. Quando esta morre é acolhido em casa da avó paterna e quando, em 1855, esta por sua vez falece é internado no Colégio da Lapa, continuando sempre longe dos pais, a sua desolada infância.
No colégio, terá como mestre Joaquim da Costa Ramalho, pai de Ramalho Ortigão, seu futuro grande amigo.
Depois, Coimbra, o convívio com Antero, com Teófilo Braga, o despertar para a vida literária... Com um lápis afiado vou anotando num caderno as perguntas que tenciono fazer ao escritor. Oxalá ele esteja em condições de me responder. Oxalá os médicos estejam enganados e a tuberculose não o ceife.
MESMO EM AGOSTO, PARIS É SEMPRE PARIS
Dois anos depois, novamente Paris. Século velho ou século novo, tanto faz. Paris é sempre Paris, mesmo em Agosto. O Sousa, o correspondente do jornal, vai esperar-me à gare e, no trajecto até ao hotel, vai descrevendo as maravilhas da civilização parisiense. Desde Abril, a Exposição Universal, «uma gigantesca mostra que celebra o fim de um século de prodigioso avanço científico e económico, mas que é também o limiar de uma era cuja grandeza é profetizada pelos sábios e pelos filósofos, cujas realidades ultrapassarão sem dúvida os sonhos da nossa imaginação», lê o Sousa num folheto que tira do bolso.
Vou tentar, depois de cumprida a minha missão, tirar um dia para visitar a exposição, digo-lhe. Desde Julho, iniciaram-se aqui os II Jogos Olímpicos da Era Moderna. O barão de Coubertin, seu entusiástico restaurador, conseguiu trazê-los à sua cidade natal. Mas sem grande êxito, informa o Sousa. Os Jogos decorrem, mas ninguém parece dar por isso.
Também em Julho passado inaugurou-se a primeira linha de comboio subterrâneo entre a Porte Maillot e a Porte de Vincennes. Mais de 10 quilómetros em cerca de meia hora. Aquilo a que chamam o metropolitano. Vamos ver se tenho ocasião de o experimentar, digo-lhe, só para não ficar calado.
MANHÃ DE SOL
Na manhã seguinte, sob um sol magnífico, num fiacre de praça chegamos ao palacete de Neully onde vive Eça de Queirós. Quando me apeio e enquanto o Sousa paga ao cocheiro, ouço gargalhadas de crianças. Venho depois a saber que, na casa ao lado, funciona um Orfanato. É a hora do recreio.
Uma criada abre-nos a porta. D. Emília, a esposa de Eça, vem-nos receber e apesar de sorridente o seu rosto não esconde as sombras de uma viva preocupação.
Depois da troca de amabilidades de circunstância, diz-nos que o Dr. Melo Viana, que com o Dr. Bouchard, tem acompanhado a evolução da doença de Eça não acredita já na cura. Havia alguma esperança em que os ares de Glion, perto de Genebra, lhe fossem favoráveis.
Ramalho Ortigão, de passagem em Paris, oferecera-se para o acompanhar à Suíça. Porém, ao cabo de duas semanas regressara a Paris, pior do que partira. O médico francês ministrou hoje pela manhã um soro especial vindo do Instituto Pasteur e o doente está melhor, mas teme-se que sejam falsas melhoras. Ontem, a esposa e os médicos interrogavam-se sobre a oportunidade da entrevista, mas Eça, com ouvido apurado, percebeu o que diziam e insistiu em nos receber:
- Ora, digam aos moços que venham. Mal não me pode fazer. Até me vai distrair.
Por isso, nessa manhã recebi no hotel o telefonema a confirmar a entrevista.
Acompanhados por D. Emília e por uma prima sua, carinhosa enfermeira do doente, entramos no quarto iluminado pelo sol da manhã.
Muito magro, muito branco, de olhos encovados, Eça espera-nos, sorridente, sentado num divã, vestindo uma leve «cabaia». Oferta do conde de Arnoso que a trouxe da China, como nos disse depois, durante a conversa. «Pareço um mandarim», comenta.
- Vêm colher dados para o necrológio? - pergunta, ironicamente, após as apresentações.
Dizemos que não, nem pensar.
Estamos, explico, a publicar aos domingos entrevistas com vultos da cultura portuguesa. E ele não podia faltar na galeria. Finge acreditar. Pede-me que comece. As senhoras, desculpam-se com afazeres. Saem do quarto. Ficamos os três. Puxo pelo caderno de apontamentos.
COIMBRA - IN ILLO TEMPORE
- Falemos dos seus tempos de Coimbra. Foi em 1861 que ali chegou. Eram tempos de grande efervescência intelectual. Como foi esse seu primeiro contacto com a vida da universidade?
- Naqueles tempos, segundo a fórmula do Evangelho, o romantismo estava nas nossas almas.
Fazíamos devotamente oração diante do busto de Shakespeare.
Lembro-me do quarto da Rua do Forno, creio eu, no último andar, quase nas confidências humorísticas das estrelas. O busto de Shakespeare, que era o nosso calvário da arte, estava ali, ao pé de uma medalha de Dante, e da Inocência de Greuze! Lembra-me também uma gravura do Juízo Final e dois esboços holandeses. Sobre a estante, por cima de Voltaire, de Diderot, de Rousseau, de Mirabeau e de alguns volumes da Enciclopédia - num quadro a figura de Napoleão, sobre uns rochedos enfáticos via os prantos do mar e o voo das gaivotas. Havia também uma colecção de minerais e duas caveiras polidas e lavadas que riam serenamente.
Na parede havia pintada a carvão uma grande cruz. Em redor, estavam escritos versículos da Bíblia e dísticos da Imitação. Mas, como eu andasse nesse tempo constipado, um pagão fez raspar toda aquela decoração ascética, dizendo que o misticismo, proibindo o sol, o calor, os banhos tépidos, as flanelas, todos os cuidados corporais, me era nocivo, e que o ateísmo era para mim uma necessidade higiénica.
Outro aconselhou então que se forrassem as paredes com pele humana; um outro achou ostentosa a pele humana, e disse, beatificamente que, como mais modesta e duradoira, lhe parecia preferível a pele catedrática. Outro instou para que se forrasse o quarto com as folhas dos compêndios; eu opus-me asperamente a isso, dando as mesmas dolorosas razões que daria um preso, se lhe quisessem forrar as paredes da enxovia com um tecido feito dos seus próprios remorsos! Tirou-se à sorte. Destinou a sorte que se forrassem as paredes com pele humana. Dispersámo-nos, lentos e tristes, para ir assassinar gente!
- Seu pai, quando estudava em Coimbra foi um dos fundadores do Teatro Académico. O senhor foi ali actor. Sabendo-se que é uma pessoa sensível, mas tímida, como conseguiu compatibilizar a timidez com a actividade teatral? Que dificuldades encontrou?
- A maior dificuldade era a dicção. Havia uma palavra que eu não conseguia pronunciar bem: era - solidariedade.
Na noite da representação tomei o partido de a cantar, separando as sílabas como notas de música. Era na casa dos adereços do teatro que nós discutíamos a superioridade da arte grega.
A pregar uma cortina, arredando bastidores, proclamávamos o Moisés e o Pensieroso com grave detrimento da Vénus de Milo - a grande Afrodite. Depois das representações, havia ceias semelhantes às bodas de Gamacho!. Uma noite saíamos todos, de mantos, com coroas de loiro, simbolizando a geração dos Petrarcas, e cantando um coro lacrimoso. Na rua, havia uma reunião de famílias. Dispersavam com gritos de aves assustadas, ao ver aquela multidão de fantasmas coroados, que recitavam um soneto amoroso, oferecido a Deus em nome dos discípulos de Petrarca!
- Foi, por certo uma época muito interessante.
- Não tenha dúvida. Aquela época foi uma pequena Restauração, tanta era a vida, a seiva espiritual, a vaga convulsão melodiosa da alma. Adorávamos o teatro. O teatro era a paixão, a luta, a dor, o coração arrancado, e gemendo, sangrando, rolando sobre uma cena resplandecente. O nosso teatro - era Shakespeare e Hugo, e os cómicos espanhóis, sombrios e magníficos, do século XVI.
- Que papéis desempenhava?
- A minha versatilidade não foi grande. Era pai nobre. Durante três anos, como pai nobre, ora grave, opulento, de suíças grisalhas, ora aldeão trémulo, apoiado ao meu cajado, eu representei entre as palmas ardentes dos académicos, toda a sorte de papéis de comédias, de dramas - tudo traduzido do francês. Por vezes tentávamos produzir alguma coisa de mais original, de menos visto que a Dama das Camélias, ou o Chapéu de Palha de Itália: reunimo-nos com papel e tinta; e entre aqueles moços, nascidos em pequenas vilórias de província, novos, frescos, em todo o brilho da imaginação, uma só ideia surgia: traduzir alguma coisa do francês.
Um dia, porém, Teófilo Braga, farto da França, escreveu uma drama conciso e violento, que se chamava Garção. Era a história e a desgraça do poeta Garção. Eu representei o Garção, com calções e cabeleira, e foi sublime; mas o Garção foi acolhido com indiferença e secura. E só um grito ressoou nos bastidores: «Ora aí têm... um fracasso! Pudera! Peças portuguesas!...»
- Mas além do teatro, teve certamente outros interesses intelectuais.
- Claro. E não apenas intelectuais. O Teatro, pouco a pouco, pusera-me em contacto com a literatura. Encontrei, organizada, completa, uma larga sociedade literária, a que em parte presidiu o homem, entre todos excelente e grande, que é mais que uma glória do século.
- Refere-se a Antero de Quental?
- A quem havia de ser?
- Deve tê-lo conhecido por alturas da célebre «Questão Coimbrã». Como viveu esse problema?
- Sabe, quando ocorreu a questão Bom-Senso e Bom-Gosto eu estava no último ano do curso de Direito. Era um estudante típico, ou seja, preocupava-me mais em vagabundear pelas ruas da cidade Alta nas noites de luar do que com as aulas ou com os problemas literários.
Só vagamente me apercebi da transcendência dessa luta que fez tremer os alicerces da vida intelectual do país. Por outro lado, meu jovem amigo, já não é fácil, depois de tantos séculos, relembrar os motivos dogmáticos por que se esgadanharam as duas literaturas rivais, de Coimbra e de Lisboa. No entanto, julgo que o velho Castilho, contra quem se ergueram então tantas lanças e tantos folhetos, não se petrificara realmente numa forma literária que pusesse estorvo à delgada corrente do espírito novo. O protesto de Antero foi portanto moral, não literário. A sua faiscante carta Bom Senso e Bom Gosto continuava, nos domínios do pensamento, a guerra por ele encetada contra todos os tiranetes, e pedagogos, e reitores obsoletos e gendarmes espirituais, com quem topava, ao penetrar, homem livre, num mundo que queria livre.
- Mas não chegou a dizer como conheceu Antero.
- Pois foi. Caí num alçapão e perdi-me.
Olhe, deixe-me ver, foi aí por volta de 1862 ou 63, numa noite macia de Abril ou Maio. Atravessando lentamente, com as sebentas na algibeira, o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loira com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguada, à maneira siríaca, reluziam aureoladas. Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII - mas um Bardo, um Bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades.
O Homem com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura... Deslumbrado, toquei o cotovelo dum camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo: «É o Antero!». Então, perante este Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo.
UMA CIDADE FRANCESA CHAMADA LISBOA
- Já pudemos ver como Coimbra foi importante no despertar da sua vida intelectual. Lisboa pode considerar-se a segunda grande etapa dessa evolução. Que papel desempenhou a capital na sua obra?
- Eu lhe conto. Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur.
Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que à maneira que o coche rolava ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras dum morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu-me surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França. E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro: «Vous avez raison, il faut aimer la France... Il n'y a que ça! Et puis, vous savez, il faut que nous vous fassions des choses, des chemins de fer, des docks, des choses... Mais il faut nous donner votre argent...
- A França e a sua cultura influenciavam fortemente os políticos e os intelectuais portugueses. Aliás, é sua a fórmula: Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo. Passados tempos, alterou essa formulação: Portugal é um país traduzido do francês em calão.
- É verdade. E se a primeira fórmula, mais subtil e exacta, colando-se à realidade como uma pelica, foi acolhida com secura e impaciência, a segunda foi recebida com rebuliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante. Já a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do Príncipe Real e num sermão.
- A que atribui essa diferença de acolhimento?
- Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto a ideia do calão nos sugere, sobretudo a nós lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias, de que eu, ai de mim, estou aqui privado!
- Mas voltemos a Lisboa. Esse francesismo era já notório quando ali chegou?
- Sim e de que maneira. Quando cheguei à capital, lembro-me que a primeira coisa que me impressionou foi ver a uma esquina um grande cartaz, anunciando a representação de Cançonetas francesas, no Casino, a brilhante Mlle. Blanche. Era outra vez a França, sempre a França. Eu deixara-a dominando em Coimbra, sob a forma filosófica; vinha encontrá-la conquistando Lisboa, de perna no ar, sob a forma do can-can... Começou então a minha carreira social em Lisboa. Mas era realmente como se eu habitasse Marselha. Nos teatros - só comédias francesas; nos homens - só livros franceses; nas lojas - só vestidos franceses; nos hotéis - só comidas francesas... Se na capital do Reino, resumo de toda a vida portuguesa, um patriota quisesse aplaudir uma comédia de Garrett ou comer arroz no forno, ou comprar uma vara de briche - não podia.
- E a vida política?
- A particular coscuvilhice política, que é tão peculiar a Lisboa como o nevoeiro a Londres, forçou-me, a meu pesar, a embrenhar-me também na política.
- ...?
- Em que política? Boa pergunta! Na francesa! Lisboa estava dividida entre ferozes adeptos de Rochefort e de Gambetta, e defensores do imperador.
O que eu conspirei!
O meu desejo era filiar-me na Internacional. Lembro-me que uma noite, a propósito de não sei que novo escândalo do Império, achando-nos uns poucos no Martinho, em torno de um café, exclamámos, pálidos de furor, cerrando os punhos: «Isto não pode ser! Já sofremos bastante. É necessário barricadas, é necessário descer à rua!» Descer à rua, era a ameaça terrível.
E descemos o degrau do Martinho! Depois, na rua, sob o quente luar de Julho, ouvindo foguetes para os lados do Passeio Público, voltámos para lá os passos frementes - porque um de nós, o mais exaltado, encontrava lá uma certa senhora em noites de fogo preso...
A MATURIDADE
- Todos os que amamos a sua obra, sabemos que nesses anos iria dar início a uma fulgurante carreira literária. A passagem pelo jornalismo com a fundação de O Distrito de Évora, a colaboração na Gazeta de Portugal, a criação do Cenáculo, com Batalha Reis e Antero de Quental. Seguimos através dos seus belos artigos do Diário de Notícias a sua viagem pelo Oriente. Lemos os seus livros, artigos e folhetins. Sabemos das suas andanças na carreira consular por Havana, Newcastle e Bristol. Até que, em plena maturidade, resolve casar. A história do casamento é menos conhecida. Importa-se de a revelar?
- Olhe, o meu casamento não tem história. Quando eu e Emília estávamos juntos, durante a longa intimidade de três meses, falávamos de livros, de cozinha, do que dizia o Ilustrado, um pouco de religião, muito das senhoras da Granja, de arte, de cães, da cultura da beterraba e uma ou outra vez do Fontes. E foi quando nos separámos que, de repente, batendo cada um por seu lado na testa, exclamámos a toda esta distância:
«É verdade, esqueceu-nos de dizer que devíamos unir os nossos destinos!».
É este o único lado pitoresco. O resto é um pouco terre-à-terre, não vale de modo nenhum o esplendor lírico do Romeo and Juliet e não poderia ser posto em árias pelo lânguido Gounod.
É apenas a história de duas pessoas que têm um coração sério e que reciprocamente o colocam no refúgio muito seguro duma estima muito profunda.
OS VENCIDOS DA VIDA
- E Os Vencidos da Vida, como foi que surgiu a ideia de formar o grupo?
- Uma vez, a uma mesa do restaurante Tavares, reunimo-nos alguns amigos: o conde de Ficalho, o Ramalho Ortigão, o Oliveira Martins, o António Cândido, o Carlos Lobo de Ávila e eu.
Lembrámo-nos de criar uma sociedade, como muitas que havia já noutros países da Europa. Um lugar onde pudéssemos conversar, debater problemas intelectuais ... enquanto se comia.
O Ramalho foi quem lançou a ideia e Oliveira Martins quem sugeriu o título, inspirado num comentário de La vie à Paris, de Jules Claretie sobre os grupos jantantes que aqui existiam. Dizia Claretie que esses jantares eram reuniões em que se encontravam os intelectuais «attristés souvent, bien changés, les uns glorieux, les autres battus de la vie».
E Oliveira Martins disse: «Battus de la vie! Eis o que nós somos também - Vencidos da Vida. Propusemo-nos dar ao país «Vida Nova» e somos afinal de contas uns Vencidos da Vida». E o nome pegou. O grupo inicial cresceu. Uma noite bonita, calma, quase de luar, em vinte e seis de Março de 1889, na sala grande do Hotel Bragança todos nos reunimos.
Todos excepto Guerra Junqueiro que não pudera chegar a tempo de Viana do Castelo. A meio do jantar chegou-nos um telegrama do Junqueiro, onde em versos de um grande talento e espírito nos saudava.
A partir daí passou a haver um jantar semanal. Quando vou a Lisboa não falto.
- Que importância têm os Vencidos da Vida para a sociedade portuguesa? Há até quem vos aponte ambições políticas, que vai haver um governo vencidista...
- Tretas, meu amigo. Os Vencidos ofereceram o mais alto exemplo moral e social de que se pode orgulhar este país. Onze sujeitos que, desde há seis anos, formaram um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em grupos de direita e de esquerda; sem terem nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem arranjarem estatutos aprovados no Governo Civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras 'tão anónimas quanto dedicadas'; sem serem elogiados no Diário de Notícias, estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente, para o futuro, na ordem das coisas morais se falará dos onze do Bragança como na ordem das coisas heróicas se fala nos onze de Inglaterra.
BALANÇO
Eça está visivelmente cansado. Sem embargo da lucidez com que continua a responder, interrompe-se frequentemente para respirar, para tossir. À porta surge a D.Emília fazendo-me sinais para que termine.
- Uma última pergunta. Ao cabo destes anos de luta pela língua e pela literatura portuguesas, sente-se devidamente recompensado?
- Sabe, se eu tivesse nascido em França e dado romances ao Petit Journal, possuiria talvez 60 000 francos de renda.
- Sente-se então arrependido.
- De certo modo... a guerra da literatura é uma luta bem vã quando se empreende com uma pena na mão, em língua portuguesa. Todo o meu erro foi, quando era moço e forte como você, não estabelecer uma mercearia para o que aliás tenho jeito e gosto.
Estava agora gordo e sossegado, com o toucinho que cobriria o meu balcão e, se você por lá aparecesse, eu diria com delicada superioridade: «Ó Sr. jornalista, temos aqui um queijinho que é de se lhe arrebitar a orelha.
E seria o céu aberto! Mas enfim, agora é tarde para chorarmos sobre carreiras erradas...
- Arrependido?
- Não, meu amigo. Chalaceava apenas. E quando, há dois anos, cheguei à minha janela do Rossio para ver o cortejo cívico do Centenário de Camões e a multidão me aplaudiu, senti que, afinal, nem tudo tem sido em vão.
Da porta, D. Emília com sinais mais incisivos, exige-nos que terminemos. Muita coisa falta ainda perguntar a Eça.
Porém, o seu ar fatigado, a tosse, a voz que enfraquece, não aconselham a que continuemos. Agradeço a afabilidade com que nos recebera e se prestara a responder ás nossas perguntas. Confessa-nos que sempre teve paixão pelos jornais e que, na realidade, me considera um camarada de profissão, pois também ele na juventude fez jornalismo. Agradecemos, despedimo-nos, desejamos melhoras.
Julgo ter conseguido disfarçar a enorme tristeza que a visão da ruína física de um espírito tão brilhante em mim provoca.
SÉCULO XIX OU SÉCULO XXIII
De regresso ao centro de Paris, o Sousa lá me convence a sacudir a angústia que a visão de um Eça moribundo me causara e a dar uma volta pela Exposição. Uma vasta área, entre a Concórdia e o Campo de Marte, com pavilhões e palácios fantásticos. Uma viagem reproduzindo o caminho-de-ferro Transiberiano, entre Moscovo e Pequim, um cruzeiro pelo Mediterrâneo, a projecção num ecrã com quase trinta metros de largura dos filmes de Louis Lumière, etc.. etc. À noite, a «fada Electricidade» que preside à Exposição, surge sob a forma de dezenas de milhares de lâmpadas num espectáculo feérico, inesquecível . Durante a conversa, Eça dissera:
- Paris já não é aquela cidade ligeira e luminosa. Agora está muito grosseira de aspectos, de modos e de ideias - e completamente negra! - Dizem os entendidos que é por causa do imenso número de fábricas - e porque Paris se vai tornando uma cidade cada dia menos intelectual e mais fabril. Já parece o século XXIII! Deus nos dê paciência para aturar a civilização!
LISBOA NOVAMENTE
Novamente em Lisboa, que agora me parece ainda mais provinciana, dado que a vejo um pouco através dos olhos implacáveis de Eça. Desde que cheguei, o major Neves todos os dias me pede os linguados com a entrevista. Não me arrisco a dizer que estão pendentes seja do que for. Prometo levar-lhos impreterivelmente hoje à tarde. Impreterivelmente é uma das expressões típicas do Neves. Na realidade, trouxe um aluvião de apontamentos com as respostas do mestre e tenho estado a organizá-los, de maneira a dar uma forma coerente ao texto. No meu quarto da Rua dos Fanqueiros vejo a cidade sob um manto de calor. Os ruídos dos choras, dos vendedores ambulantes, chegam difusamente à minha água-furtada. Continuo a escrever. O Neves terá hoje à tarde a sua entrevista e talvez ainda a possa meter na edição de amanhã.
DE SÚBITO, UM TELEGRAMA
Olho o telegrama que o boletineiro me acaba de entregar à porta. Sousa é lacónico: «Eça de Queirós morreu ontem entardecer. No Orfanato vizinho crianças cantavam Miserere».
Saio para ir à redacção entregar a entrevista ao Neves. Amanhã a minha prosa terá, pela primeira vez, honras de primeira página. O dia está bonito, quente e luminoso. Os choras e os americanos percorrem as ruas tilintando. Na Rua dos Douradores há carroças, cheiro à urina e aos excrementos dos cavalos. Dois galegos de corda ao ombro estão à esquina da Rua da Assunção conversando. Desço a Rua de Santa Justa
Da porta do Café Patinhas, fumando um charuto, o Lopes, um rapaz que estudou comigo em Coimbra, grita-me uma tontice qualquer. A Rua Augusta, a Rua do Ouro são percorridas por carruagens e trens de praça. Começo a subir as escadas do elevador, rumo à Rua do Carmo. Tudo está na mesma. Lisboa, o país e o mundo estão completamente indiferentes à morte de Eça. Os navios fazem-se ao mar, nos bancos as letras são descontadas, as fábricas laboram, o comércio vende... tudo segue o seu rumo. Como se não estivéssemos hoje muito mais pobres do que ontem!
«Nesta entrevista imaginária, todas as respostas de Eça foram organizadas com recurso a diversos textos do escritor. E embora em alguns casos se tenham introduzido pequeníssimas alterações de forma e de pormenor, procurámos sempre respeitar o conteúdo e a substância das afirmações queirosianas.»
( texto retirado de Vidas Lusófonas)
E PRONTO….ATÉ BREVE…com os QUARENTA IMORTAIS…
Abraços
Saudações de esquerda
Olhar atento*militante de esquerda
Gostei deste texto.
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